MOEDAS DIGITAIS: O DINHEIRO JÁ NÃO É O QUE ERA!
31 May
Foi entregue à humanidade uma fórmula praticamente infalível para garantir transações diretas e privadas, que na prática são 100% seguras, entre quaisquer indivíduos.
A revista “The Economist” escreveu que a tecnologia Blockchain é a “máquina da verdade”, e a moeda digital Bitcoin foi a primeira aplicação desta fórmula na Internet.
Entretanto, vários empreendedores foram criando as suas próprias moedas digitais. Os governos começaram agora a fazer o mesmo, mas pretendendo ficar com a exclusividade…
A Internet vai novamente mudar o mundo: há décadas que ela permite a partilha de informação entre pares, mas, desta feita, é a própria transação de valor, segura e privada, que passa a poder ser efetuada diretamente entre pares. Esta nova funcionalidade da Internet deverá ser ainda mais disruptiva do que a anterior, isto porque, na história da humanidade, as transações sempre foram mais importantes do que a partilha: partilhar é importante, mas acontece que transacionar é indispensável.
Da mesma forma que a partilha de informação, entre pares, se traduziu na desintermediação de setores como o do entretenimento (tudo começou com a partilha de músicas), a transação de valor, entre pares, conduzirá à desintermediação de setores bastante mais nevrálgicos. Agora não se trata apenas de partilhar músicas, estando em causa a intermediação da confiança subjacente às transações. Naturalmente, o primeiro setor afetado será o financeiro. As sequelas políticas desta mudança serão formidáveis, e a dicotomia “aberto” vs. “fechado” tornar-se-á a maior disputa do século XXI. Se triunfar a “abertura”, teremos moedas digitais privadas, em livre concorrência no mercado. Isto é muito importante, pois, se não as tivermos, será fechada a maior porta de acesso à inovação e ao empreendedorismo.
Há muito que o dinheiro em papel tem vindo a ser substituído pelo dinheiro eletrónico. Todos usamos cartões que movimentam moedas virtuais. Mas o que se irá passar agora é diferente! É extremamente perigoso confundir as moedas digitais com as moedas virtuais hoje existentes. As moedas virtuais são, afinal, meras réplicas eletrónicas das moedas tradicionais. A respetiva vantagem resume-se a uma maior conveniência em termos de armazenamento e transação. Como é sabido, o formato eletrónico das moedas veio agilizar muitíssimo o sistema financeiro, mas estas moedas virtuais já não constituem novidade. Por seu turno, as recém-criadas moedas digitais pertencem a um escalão superior do “campeonato financeiro”, apresentando duas vantagens competitivas decisivas: são programáveis e rodeiam-se de um novo tipo de privacidade cujas regras só dependem da vontade política dos seus criadores.
O dinheiro tradicional reduz todo o valor a uma única dimensão, a dimensão do “valor-de-troca”. Mais: esta única dimensão tornou-se desmesuradamente especulativa. Com as moedas digitais, pela primeira vez, é possível indexar o “valor-de-troca” de uma moeda à sua utilidade (“valor-de-uso”), a qual pode ser previamente programada, pelo que, a cotação das moedas digitais, como veremos, pode ficar adstrita ao desenvolvimento de ecossistemas comunitários.
Para perceber mais facilmente esta nova realidade, é bom entender que as moedas digitais integram mais recursos do que os estritamente necessários ao dinheiro tradicional. Mais vale pensar nelas como “ativos digitais” (tokens), capazes de desencadear ações concretas, tanto no mundo digital como no mundo físico! Isto pode parecer magia, mas é “apenas” tecnologia. Enquanto as moedas tradicionais só muito raramente podem desencadear este tipo de ações, (por exemplo, uma moeda de 50 cêntimos pode acionar uma máquina de “self-service”), as moedas digitais podem agregar sempre as valências “troca” e “uso” (com toda a facilidade). Por outro lado,as moedas digitais também podem impor às pessoas um acesso discricionário a bens e serviços. Com elas, o dinheiro nem sempre é todo igual… Pode ser surpreendente, mas o valor das moedas digitais advém da sua programação! É isso que as torna apetecíveis, mas também assustadoras…. Por exemplo, gastar a moeda digital “Ether” é a única forma de alguém conseguir criar “contratos inteligentes” na rede Ethereum. Não existe outra forma de criar tais contratos. Portanto, no futuro, despender uma determinada moeda digital, poderá ser a única forma do indivíduo obter algo de que realmente necessita…. Bastaria esta simples razão para considerarmos as moedas digitais como sendo muito mais do que simples ativos financeiros. Na verdade, a possibilidade de elas se constituírem como poderosos instrumentos de controlo político, económico e social, irá depender, exclusivamente, da vontade política e da tutela informática.
As moedas digitais devem ser liberalizadas. Devem ser das pessoas e para as pessoas. Sobretudo nesta época de medo e crise, nada deve distrair-nos de tão fulcral imperativo.
Não ouçamos cantos de sereia, nem façamos ouvidos de marcador perante tamanha inovação. Apenas a livre concorrência entre moedas digitais pode minimizar riscos bem sérios, libertando o engenho humano e a iniciativa individual nos anos vindouros. Precisamos de moedas digitais privadas; tokens que possam estimular os indivíduos empreendedores e dar azo a protocolos de programação definidos em função das expetativas de mercados comunitários, definidos pelas necessidades das pessoas e não por outros interesses.
Os tokens podem ser programados para garantir a gestão de recompensas e benefícios entre os membros de um ecossistema, de molde a incentivar, cada um deles, a interagir simbioticamente, mesmo enquanto tratam da prossecução dos seus próprios interesses.
É fulcral poder incentivar comportamentos individuais criativos, não subordinados a desígnios de poder, para beneficiar a sociedade civil, os ecossistemas comunitários e o desenvolvimento humano. Há que estimular o talento e a argúcia necessária à conceção e desenvolvimento de moedas digitais, tornando-as particularmente úteis em comunidades com interesses comuns. Através dos novos recursos digitais, será possível recompensar o mérito dos indivíduos mais capazes de contribuir para correlacionar os ganhos individuais com os sucessos coletivos. Pelas leis do mercado, as moedas digitais privadas podem funcionar também como “tokens utilitários”, que tenderão a ser programados de acordo com as expetativas dos membros das comunidades a que se destinem. Estas expetativas irão ter também em conta imperativos de sustentabilidade, pois as moedas digitais podem representar externalidades positivas ou negativas, tais como “reciclagem” ou “poluição” (algo que o dinheiro tradicional não tem vindo a contemplar). Assim, as moedas e os tokens digitais representam uma forma inteiramente nova de orientar a sociedade, podendo contribuir para instituir um novo tipo de capitalismo: um capitalismo de ação coletiva.
Para não cometer o terrível erro de confundir “ação coletiva” com “coletivismo”, é muito importante entender que tokens com utilidades específicas permitem a criação de incentivos económicos que, embora sejam privados, podem ser constituídos de acordo com uma perspectiva comunitária.
A forma de alcançar uma tal quimera financeira será, afinal, comprometer o comércio (e o lucro individual) com o benefício coletivo. Se as premissas do desenvolvimento sustentável coletivo puderem ser “tokenizadas”, elas tornar-se-ão, também, incentivos financeiros. Como tal, serão constantemente lembradas!
A “criptoeconomia” traz consigo uma nova realidade, que muitos ainda não compreenderam. A maioria dos investidores que ocupa o novo “criptoespaço”, considera que as aplicações mais desafiantes da tecnologia blockchain consistem em tokens básicos (e.g. Bitcoin) que funcionam sobretudo como reserva de valor. Tais indivíduos, ou não estão minimamente interessados nos destinos comunitários (infelizmente grassa o instinto predador e especulativo), ou ignoram que uma “economia circular” de tokens, especialmente úteis em comunidades distintas, poderá reverter a favor dos respetivos ecossistemas, uma vez que proporcionará a cada indivíduo, que neles intervém, a nova possibilidade de transaccionar valores correspondentes a um conjunto de benefícios mais alinhadas com o interesse comunitário e o sucesso coletivo.
Quanto às moedas digitais públicas, irão aumentar a granularidade das políticas monetárias, alargando o poder dos estados, bem como a influência das respetivas entidades emissoras. Por isto mesmo, as moedas digitais, ao contrário das virtuais, não apenas ajudam o sistema financeiro, como constituem um poderoso instrumento político. Como são direcionáveis, através de “contratos inteligentes”, podem ser programadas para exercer certos efeitos, por exemplo, em função do tempo decorrido até à sua utilização, do setor económico em questão ou da taxa de juros praticada. Assim, elas alcançarão setores específicos, em quaisquer datas previamente estipuladas e com taxas de empréstimo adaptadas as vicissitudes do mercado. Entretanto, estas e muitas outras condições serão sempre cumpridas com rigor matemático.
Por todos estes motivos, muitos governos quererão lançar a sua própria moeda digital nacional. Na verdade, poucos dirigentes irão abdicar do inusitado grau de governança proporcionado por uma política monetária administrada “à la carte”… Afinal, a oferta monetária deixará de estar agregada: as moedas digitais permitirão programar a alocação de ativos financeiros com “precisão balística”, dando um novo significado à própria expressão “política monetária”. Por exemplo, os bancos centrais não irão apenas segmentar a taxa de juro interbancário, mas, também, definir taxas de juro consoante o setor e a data da operação, as oscilações do mercado, etc. Todas estas condições serão alvo de otimização combinatória.
Considerando todas estas razões, é num sistema de mercado livre, em concorrência dinâmica, que as moedas digitais devem poder medir forças. Se estas forem proibidas e as moedas digitais forem exclusivamente estatais (ou corporativas), as pessoas terão a sua privacidade sacrificada em prol de um novo “capitalismo de vigilância”, onde a palavra democracia será, cada vez mais, um eufemismo. Não podemos fechar a porta à inovação, nem dar tão poderosos argumentos digitais a regimes coletivistas ou corporativistas. Interessa sim fomentar a ação coletiva, que nada deve ter a ver com coletivismo. Quem conheceu a crua realidade, vivida no séc. XX, a leste da “cortina de ferro”, não deve ficar agora “a leste” desta disrupção tecnológica. Importa esclarecer os portugueses sobre os riscos, bem reais, da renovação de sistemas comunistas ou fascistas, nesta nova era digital que tanto facilitará a vigilância e o controlo dos cidadãos. A liberdade é o bem mais precioso de uma nação. Se perdermos a liberdade, perdemos tudo.
Num processo irreversível, ainda mais acelerado pela atual crise pandémica, estamos a consumir cada vez mais serviços “on-line”, sendo crescente o número de dispositivos ligados à “nuvem eletrónica”. Esta nova realidade tornará as moedas digitais muito mais convenientes do que as tradicionais. Devido à sua extrema divisibilidade e ao facto de serem incorporáveis em “contratos inteligentes”, as moedas digitais serão a forma de eleição para quantificar e gerir o incontável número de transações do quotidiano dos cidadãos. O problema é que estas moedas digitais, tanto abrem as portas a um novo tipo de capitalismo mais sustentável, como também tornam muito fácil a instituição daquilo a que podemos chamar um “capitalismo de vigilância”.
Em outubro de 2019, a Associação de Bancos Alemães solicitou ao Banco Central Europeu que equacionasse a criação de um euro digital programável. Isto não é surpreendente, pois uma moeda digital europeia viabilizará a criação de obrigações reais e de políticas monetárias minuciosamente segmentadas, ao invés de meras recomendações. Veremos, se a moeda digital europeia irá conviver abertamente com moedas digitais privadas, ou se, pelo contrário, tal liberdade de escolha estará vedada aos cidadãos.
A tradição pode ser muito importante e as moedas privadas não têm sido geralmente permitidas pelos estados ao longo dos séculos, mas, na verdade, nem o dinheiro nem a tradição são já aquilo que eram…
Dario de Oliveira Rodrigues
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