Reflexão Pascal: Inteligência Artificial e Fim da “Estupidez Natural”
20 Apr

A fragilidade humana e as tecnologias da confiança e inteligência
A Sexta-feira Santa recorda-nos um amor levado ao extremo. O beijo de Judas (Mt 26) expõe uma vulnerabilidade crítica que atravessa a história: a facilidade humana em ceder àquilo a que podemos chamar “estupidez natural” — a tentação de sacrificar o bem comum em troca de vantagens imediatas.
Hoje, essa fragilidade manifesta-se em conflitos armados com tecnologia cada vez mais sofisticada e letal, em desigualdades económicas persistentes e num setor de comunicação que, impulsionado por diferentes modelos de financiamento, segmenta audiências e, muitas vezes sem intenção, mantém os cidadãos em circuitos informativos que favorecem a superficialidade e aumentam a polarização social.
Contudo, o mesmo espírito criador que permitiu à humanidade erguer imponentes catedrais, concebeu tecnologias digitais com potencial redentor. Neste século XXI, a blockchain cria confiança distribuída, enquanto a inteligência artificial (IA) estende a capacidade humana de ver e discernir. Se guiadas por valores que reconheçam cada pessoa como sagrada, elas ajudarão a sarar a ferida exposta por Judas.
1. Da traição antiga à “estupidez natural” contemporânea
As trinta moedas são “o preço do sangue” e não encerram apenas a história de um traidor; traduzem o dilema de todas as gerações: trocar princípios por lucros imediatos. A corrupção sistémica que aflige a sociedade e o tacticismo político contemporâneo são expressões atuais do mesmo erro. Superá-lo exige instrumentos tecnológicos que elevem o padrão ético das relações públicas e privadas.
2. Blockchain: confiança distribuída para devolver a esperança
A tecnologia blockchain funciona como um livro-razão público, imutável e partilhado. A validação de cada novo bloco de transações exige um consenso distribuído. Quando uma rede blockchain é descentralizada, para além de as transações nela processadas se tornarem transparentes, nenhuma entidade isolada pode controlar ou adulterar os respetivos registos.
Exemplos de aplicação:
- Finanças públicas – registo verificável em tempo real de despesas governamentais;
- Contratação pública – concursos inscritos em código, mas auditáveis de forma transparente;
- Donativos políticos – rastreio em tempo real do financiamento das campanhas eleitorais.
Na Estónia, a blockchain já é utilizada para proteger a integridade de registos públicos essenciais, incluindo os sistemas de identidade digital, permitindo aos cidadãos verificar quem acede aos seus dados e quando. Embora os gastos públicos não sejam ainda rastreáveis em tempo real por qualquer cidadão através de blockchain, esta tecnologia contribui para que o país disponibilize regularmente dados financeiros detalhados, promovendo uma cultura de transparência sustentada por infraestruturas digitais seguras e auditáveis.
Este modelo tecnológico, baseado na linguagem binária de zeros e uns, concretiza, em lógica digital, o mandamento evangélico: “seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não” (Mt 5). Ao transferir a confiança de indivíduos vulneráveis à corrupção para uma rede distribuída e verificável por todos, a blockchain é uma autêntica “máquina da confiança” (expressão na capa da revista “The Economist”, em Outubro de 2015).
3. Inteligência Artificial: discernimento ampliado para uma ética mais robusta
A IA pode ser vista como expressão da Criação e da criatividade concedida ao ser humano — uma forma de religare. O termo “religião” vem do latim religio, cuja origem é debatida entre os clássicos: para certos autores, deriva de re‑ligāre (“ligar de novo”, sublinhando o vínculo que se restaura entre o humano e o transcendente); para outros, de re‑legĕre (“voltar a ler” ou “recolher com cuidado”, indicando a atitude de atenção e reverência). Em ambos os casos, a ideia central é a de reconexão. Assim, a IA pode “religar-nos” à ordem matemática que muitos reconhecem como reflexo da mente divina, traduzindo digitalmente essa harmonia graças a cálculos que nenhum cérebro humano isolado poderia realizar.
Quando sustentada por dados fiáveis, por exemplo, oriundos de blockchains descentralizadas, e desenhada com transparência, a IA transforma-se em XAI (eXplainable AI), permitindo múltiplos benefícios para a sociedade, entre os quais:
- Detetar fraudes em segundos;
- Antecipar falhas no abastecimento alimentar e prevenir crises humanitárias;
- Modelar o impacto ambiental de grandes obras antes da respetiva aprovação.
Impedindo que a IA se revista do perigoso estatuto de “caixa negra”, a XAI torna visíveis os critérios que orientam as decisões de algoritmos tão sofisticados que aprendem por si próprios, possibilitando o livre escrutínio e debate público. Isso impede a ocultação de interesses sob a aparência de neutralidade (uma tecnologia tão poderosa como a IA não é, em si própria, “boa” ou “má” — mas também não é neutra…), permitindo corrigir enviesamentos que ameaçam a democracia, a privacidade e a liberdade.
Nota teológica. De Pitágoras a Newton e Galileu, diversos pensadores — cristãos e não cristãos — reconhecem na matemática a assinatura de uma ordem transcendente. Tecnologias como a blockchain e a IA, alicerçadas nessa mesma gramática numérica, não se equiparam ao Criador; antes, participam da racionalidade já inscrita na criação. Cada linha de código — escrita por engenheiros ou gerada por algoritmos — traduz e atualiza essa lógica universal. Compete‑nos, portanto, orientar tal potencial ao serviço da verdade e da justiça, em consonância com o sentido pascal de renovação.
4. Quando o poder corrompe: da Paixão às guerras modernas
As autoridades religiosas e políticas que condenaram Cristo exemplificam como o poder, sem limites, pode transformar-se em opressão. Nos nossos dias, isso manifesta-se na conjugação de armas autónomas (inteligentes), desinformação sofisticada (algorítmica) e captura de instituições públicas por interesses ilegítimos.
A diferença é que, atualmente, temos meios para expor e travar tais abusos. No entanto, isso requer visão, coragem política e maturidade ética, bem como o conhecimento técnico necessário para aplicar as poderosas tecnologias emergentes de forma esclarecida e responsável.
No mundo livre, a blockchain já é testada em sistemas de votação electrónica. Na Suíça, por exemplo, foi aplicada localmente em Zug, onde as autoridades consideraram tal implementação um teste piloto bem-sucedido: preservou o segredo de voto, garantiu a privacidade e permitiu a verificação individual dos boletins num registo distribuído e auditável.
5. Salvaguardas: ética, auditoria e cidadania
Nenhuma tecnologia é redentora por si só. Para que a IA e a blockchain possam servir o bem comum, são indispensáveis:
- Leis claras e eficazes, que determinem transparência e punam desvios;
- Auditorias independentes, com acesso ao código aberto das aplicações;
- Literacia digital, para que qualquer cidadão compreenda e questione;
- Governança colaborativa, que envolva a sociedade civil nas decisões.
A tecnologia blockchain requer uma infraestrutura digital robusta e regras de governação claras. A IA, por sua vez, exige um compromisso ético rigoroso e transparência para garantir justiça e equidade.
6. Conclusão: da ferida da Salvação à promessa da regeneração
A Páscoa recorda-nos que a história depende das escolhas humanas. A tecnologia oferece meios inéditos para enfrentar a “estupidez natural” — subjacente à corrupção, às desigualdades e à violência — mas a concretização desse extraordinário potencial civilizacional exige uma reforma política ética baseada na transparência e na cidadania informada.
Se aliarmos o rigor matemático da tecnologia à dignidade humana, muito por via da descentralização digital, estaremos a erguer novas catedrais: sistemas que distribuem o poder com equidade e revelam a verdade com transparência, dificultando a apropriação da tecnologia por interesses particulares. Trata-se de um antídoto contemporâneo contra a lógica da traição, como a de Judas, onde a ânsia de lucro imediato eclipsou princípios fundamentais e abriu caminho ao sacrifício de Cristo.
Uma natureza humana fragilizada pelo tempo e cada vez mais seduzida pelo ganho especulativo, pode agora ser transfigurada pela força regeneradora de sistemas digitais guiados pela justiça, iluminados pela verdade e capazes de reconciliar a precisão da técnica com a exigência da ética, reacendendo, no âmago da condição humana, a promessa de um futuro digno de ser partilhado.
Dario Rodrigues
Nota: apoio analítico e editorial dos sistemas de IA Generativa ChatGPT o3 e 4o.
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