MOEDAS DIGITAIS: DINHEIRO BOM E DINHEIRO MAU.

23 May


Depois do dinheiro tradicional ter dado origem ao “Banco Bom” e ao “Banco Mau”, as Moedas Digitais vêm trazer-nos, pela primeira vez, o “Dinheiro Bom” e o “Dinheiro Mau”.

As moedas digitais são programáveis: tanto podem servir para incentivar comportamentos sustentáveis e contribuir para o nosso desenvolvimento coletivo, como podem suprimir a privacidade dos cidadãos, impedindo um consumo livre e voluntário. Conseguiremos escolher livremente as nossas futuras moedas digitais?

O país mais populoso do planeta já fez a sua escolha, tendo sido o primeiro a lançar uma moeda digital. Sendo uma moeda digital centralizada, permitirá ao regime condicionar todas as transações com ela realizadas. Proibindo aos cidadãos o uso de “chaves-privadas”, será fácil controlar o comportamento de cada consumidor, existindo fortes razões para suspeitar que o “grande líder” não ponderou apenas a dimensão financeira destas novas moedas.

Mas também há quem estreite o olhar humano numa única dimensão …

Num relatório (1) da multinacional Goldman Sachs, é possível ler-se que “as curas de doenças podem ser más para os negócios no longo prazo”. Este relatório, dirigido a empresas de biotecnologia, coloca a seguinte questão: “curar os pacientes é um modelo de negócios sustentável?”, apontando o exemplo da empresa Gilead Sciences e o seu tratamento da hepatite C, que alcança taxas de recuperação de 90 % (curas definitivas). As ações desta multinacional farmacêutica dispararam recentemente após vários doentes de COVID-19 terem tido uma rápida recuperação quando lhes foi administrado o medicamento “remdesivir”. Tal subida na bolsa não surpreende, já que a biotecnologia parece oferecer soluções definitivas para novas viroses consideradas inevitáveis por se invadirem habitats selvagens. Ainda no mesmo relatório, refere-se que “o potencial para providenciar ‘curas de uma dose’ é um dos aspectos mais atrativos da terapia genética, terapia celular geneticamente modificada e edição de genes.“. No entanto, mesmo admitindo tal benefício, o relatório retira a seguinte conclusão: “Ao mesmo tempo que esta proposta traz um valor tremendo para os pacientes e a sociedade, poderá representar um desafio para os desenvolvedores da medicina do genoma que procuram um fluxo permanente de receitas” …

Esta fria análise, evidencia uma realidade tão implacável quanto assente num modelo absurdo. Afinal, os modelos de negócio não sustentáveis são, precisamente, aqueles que assentam na lógica financeira patente neste relatório. Será que os negócios têm mesmo de ter uma “soma nula”? Será que todo o valor humano tem de continuar a estar financeiramente reduzido a uma única dimensão? Esta tem sido a lógica dominante nos negócios, mas o futuro deverá trazer uma realidade bem diferente. A inesperada mudança foi anunciada por uma tecnologia, baseada na criptografia, que trouxe consigo uma confiança em rede nunca vista. É nesta tecnologia que se baseiam as novas moedas digitais.

Vai-se percebendo que a tecnologia blockchain viabiliza modelos de negócio verdadeiramente inovadores. No entanto, talvez falte perceber que esta nova tecnologia torna o mundo propenso a centralismos nada democráticos, sendo necessárias políticas que salvaguardem a liberdade e a privacidade dos cidadãos. A “confiança distribuída” nasceu descentralizada, como veremos, mas as moedas digitais (“criptomoedas”), também têm duas faces e teremos de lidar com o reverso da medalha. Para enquadrar esta realidade, comecemos por observar duas ironias digitais.

O objetivo inicial dos criadores da INTERNET foi criar um sistema de comunicações que fosse imune a ataques localizados. Conseguiram-no graças a uma característica-chave das redes: mesmo cortando ou interrompendo várias das suas conexões, o circuito entre os nós de uma rede fica assegurado por conexões alternativas, pelo que a rede nunca deixará de funcionar.

A primeira grande ironia do mundo digital é que a Internet, embora tenha sido projetada para defender a autoridade, contra eventuais ações que pudessem subverter a ordem e o poder, veio, ela própria, a tornar-se o instrumento mais subversivo da história da humanidade.

Os inúmeros nós e ligações descentralizadas da Internet, assemelham-se às incontáveis cabeças da mitológica Hidra grega. Este monstro é imortal e invencível, porque, quando é decepada alguma das suas cabeças, logo nascem outras duas. E realmente, apesar do esforço hercúleo de certos países para cortar a rede e acabar com a Internet, ela continua a funcionar!

40 anos depois da criação da Internet, surgiu outra tecnologia revolucionária. Trata-se de uma forma, praticamente infalível, de realizar transações on-line inteiramente seguras, bastando, para tal, recorrer à introdução de um código privado. A posse desta “chave privada” garante, para todo o sempre, a privacidade de cada transação. Fixemos esta informação, que é crucial!

A tecnologia blockchain é ainda mais disruptiva do que a própria Internet, pois veio dotar esta rede global de uma capacidade que, muito provavelmente, irá alterar toda a ordem mundial.

Numa segunda grande ironia, talvez maior do que a primeira, a invencível “Hidra Digital” está novamente a surpreender quem inadvertidamente lhe aumentou o poder. A primeira ironia da Internet fora uma não planeada descentralização da sociedade, mas, desta vez, a ironia consiste no oposto: uma centralização do poder que se está a revelar perigosamente fácil de planear!

Bafejada com um “super-poder” criptográfico, a monstruosa Hidra passara a poder acertar sozinha as contas de todas as transações processadas nas suas intermináveis cabeças… Believe it or not! A confiança nas transações deixava de requerer intermediação humana. Nem familiares, nem amigos, nem bancos, nem sequer o estado-nação …  Para confiar a 100% numa transação, bastava agora, apenas e só, depositar toda a confiança numa chave privada e na matemática! Mergulhados na crise financeira de 2009, isto nem parecia ser uma má notícia …

Segundo o seu próprio criador, “pai incógnito” do Bitcoin, o intuito de tal inovação tecnológica seria libertar as pessoas dos ditames financeiros que estiveram na origem da crise económica de então, a qual prejudicou muitas pessoas, a nível mundial, como todos nós bem recordamos. Muitos desconfiaram imediatamente desta nova “criptomoeda”, transacionada na Internet sem intervenção de bancos ou de quaisquer seres humanos, enquanto outros consideraram-na uma justificável tentativa de evitar a repetição das tropelias financeiras que originaram essa crise.

No entanto, iria de novo “sair o tiro pela culatra” aos que criaram uma tecnologia revolucionária, revelando-se demasiado fácil privar os cidadãos da propriedade dos seus dados pessoais. Já não se trata apenas de ir trocando a nossa privacidade por “gatinhos” na Internet. Informação significa poder, sendo que deter toda a informação sobre o comportamento de consumo, equivale a deter todo o poder sobre os próprios consumidores. Com as moedas digitais, caso a tutela informática das transações seja centralizada, poderemos todos dizer adeus à nossa privacidade e à nossa liberdade …

No século XXI, a nova “Hidra Digital” não sairá derrotada por Hércules, podendo sim, vir a ser amestrada por regimes totalitários e/ou interesses corporativos, tornando-se no feroz animal de guarda de ditadores e/ou vorazes CEOs seduzidos pela lógica do poder e do lucro pessoal.

Precisamos de um mercado verdadeiramente livre, mas também necessitamos de um tipo de dinheiro que não reduza todo o valor humano à única dimensão revelada no relatório da Goldman Sachs. Ora, acontece que as novas moedas digitais representam uma solução multi-dimensional para este problema, na medida em que podem ser programadas informaticamente para alinhar as proposições de valor financeiro com as proposições de valor económico numa comunidade. Entretanto, para que tal programação reverta a favor do desenvolvimento humano, o mérito das várias moedas digitais deve ser ajuizado de forma aberta e descentralizada, em livre concorrência no mercado. Só deste modo é que as moedas digitais servirão mais os interesses comunitários e menos os interesses do costume.

Pelas leis do mercado, as moedas digitais privadas não só incentivarão ações coletivas por parte dos seus proprietários, como também medirão o valor criado nos ecossistemas comunitários. É muito importante não confundir “ação coletiva” com “coletivismo”: os tokens digitais podem ser programados para terem utilidades específicas e funcionarem como incentivos económicos individuais numa ótica comunitária. Cada indivíduo passa a poder perseguir o seu lucro pessoal de forma multi-dimensional, transaccionando valores indexados ao desenvolvimento das comunidades e ao sucesso coletivo.

Para perceber esta nova realidade da era pós-blockchain, entendamos que as moedas digitais integram mais recursos do que os necessários ao funcionamento característico do dinheiro. Podemos pensar nelas como tokens ou ativos digitais programáveis, que irão criar um sistema financeiro inteiramente novo. Na verdade, por mais estranho que tal possa parecer, tornou-se tecnicamente possível um indivíduo criar sistemas monetários acessíveis a qualquer pessoa.

As moedas digitais podem ter uma dimensão utilitária correspondente às expectativas das comunidades onde elas circulam. Podem integrar benefícios comunitários (antes incompatíveis com a perspetiva financeira individual), porque permitem quantificar externalidades positivas (e.g. reciclagem) e negativas (e.g. poluição). É fundamental compreender que a economia e as finanças digitais são suficientemente “elásticas” para permitir transacionar externalidades. Esta “elasticidade digital” será crucial para enfrentar os enormes desafios de sustentabilidade do nosso tempo.

Enquanto as moedas tradicionais não conseguem representar diferentes dimensões de valor, as moedas digitais podem fazê-lo: imaginemos que se pretende derrubar uma floresta tropical para poder construir escolas. Ao quantificar, numa mesma moeda, todas as vantagens e desvantagens de tal opção, medindo apenas uma dimensão de valor, estaremos a presumir que os custos e os benefícios de ter árvores e de ter escolas são de qualidade comparável. Como facilmente se compreende, isto não é verdade. A floresta tropical irá perder-se para todo o sempre, seja lá qual for o número de escolas que sejam construídas no seu lugar. Podemos concluir que o dinheiro tradicional, ao contemplar uma única dimensão de valor, não consegue dar conta do recado quando se trata de contabilizar múltiplos aspetos sobremaneira relevantes para o desenvolvimento humano.

Vejamos, por seu turno, o que acontece no caso do novo dinheiro programável. Ora, se forem utilizadas duas moedas digitais diferentes, uma delas quantificando as emissões de CO2 e a outra avaliando os benefícios educativos, torna-se evidente que a construção de escolas nunca poderá “acertar as contas” face à diminuição da capacidade de a floresta tropical capturar CO2. Num sistema de mercado, o valor relativo ou cotação de cada moeda digital irá depender da respetiva oferta e procura nos ecossistemas comunitários em que forem utilizadas. Deste modo, os tokens digitais funcionarão como um sistema de incentivos e recompensas que servirá para encorajar certos comportamentos e desencorajar outros. Terminando o nosso exemplo, os indivíduos que mantivessem um saldo de tokens CO2 acima da média, poderiam beneficiar de reputação social favorável na candidatura a determinadas funções, ou na obtenção de descontos em certos produtos. Desta forma, o comportamento individual em transações privadas, irá ser influenciado pela importância atribuída a cada token na comunidade.

A “criptoeconomia” traz consigo uma realidade ainda mal compreendida.
A maioria dos investidores que ocupa o “criptoespaço”, parece considerar que as aplicações mais desafiantes da tecnologia blockchain consistem em tokens básicos (e.g. Bitcoin), que funcionam sobretudo como reserva de valor. Tais indivíduos e empresas, não estarão, porventura, interessados nos destinos comunitários (infelizmente, grassa o instinto predador e especulativo na sociedade), mas, outros indivíduos, enraizados nas suas comunidades, terão um incentivo ímpar para criar “economias circulares” alinhando interesses individuais e coletivos.

Por todas estas razões, precisamos de lutar pela liberdade política e económica necessária para que as moedas digitais concorram livre e abertamente no mercado. Só elas podem incentivar a criatividade e a inovação, na senda de um futuro sustentável. Para que este “dinheiro bom” venha a ser uma realidade, importa não só compreender a respetiva natureza, mas, também, permanecer vigilantes face a um “dinheiro mau” que chegou primeiro…                 


Dario de Oliveira Rodrigues 
 

(1) Sampaio, Gustavo. “Goldman Sachs Questiona: ‘Curar Doentes é Um Modelo De Negócio Sustentável?”.” O Jornal Económico, 14 Apr. 2018, jornaleconomico.sapo.pt/noticias/goldman-sachs-questiona-curar-doentes-e-um-modelo-de-negocio-sustentavel-294118.                                    

 

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